Cultura do cancelamento, a versão atualizada dos apedrejamentos
Há uns dias, uma influencer que sigo e de quem gosto muito, a Flávia Calina, foi envolvida numa polémica por ter feito "like" em publicações consideradas transfóbicas. Neste momento e depois de outras influencers terem partilhado a situação nas suas redes sociais, começou a crescer a já conhecida reação de "cancelamento" à senhora.
Quem me conhece sabe que sou muito sensível às causas que envolvem a comunidade lgbtqiapn+. A minha empatia por esta comunidade é igual à empatia que sinto por qualquer minoria que, não fazendo mal a ninguém, é vitima de violência, de discriminação e de humilhações cruéis e reveladoras do pior que existe na humanidade.
Por isso, não é com agrado que vejo uma pessoa que admiro a concordar com publicações potencialmente transfóbicas.
Ainda assim, é com mais desagrado ainda que vejo como as pessoas gostam de se agarrar ao "cancelamento" com uma avidez que equiparo aos apedrejamentos de "pecadores" que existiam há milhares de anos (e, infelizmente, talvez ainda existam).
Entendo que algumas pessoas, desiludidas, tenham o desejo de deixar de seguir alguém que deixaram de admirar. Eu própria o faço e de consciência bastante tranquila. Não vou seguir alguém que defende ideias com as quais não me identifico. Isso é óbvio. Mas pode mesmo uma atitude, talvez não muito refletida, apagar o bom trabalho de anos e anos? E é mesmo necessário desencadear um "tribunal público", partilhando a "falta cometida" e dando palco a comentários negativos, ameaças e todo o tipo de humilhação pública?
Nenhum de nós é perfeito. Acredito que todos já teremos dito ou escrito algo de que não nos orgulhamos. Todos nós já tivemos atitudes menos dignas, atitudes com que não nos identificamos e que não refletem a pessoa que somos.
O que nos define é aquilo que fazemos constantemente e a pessoa que demonstramos ser, com as nossas ações, todos os dias. Entristece-me que um ato menos feliz possa colocar em causa anos e anos de bom trabalho a influenciar positivamente milhares de mães.
Quase todos defendemos a liberdade de expressão. Deixemos que as pessoas se expressem de acordo com as suas convições, mesmo que sejam opostas às nossas. Façamo-lo nós, também, com respeito e empatia.
A cultura do cancelamento, que leva ao impiedoso "tribunal virtual", à perda de seguidores, de fonte de rendimento e de saúde mental tem de ser revista e repensada por cada um de nós. Façamos um esforço para combater esta nossa vontade de ver gente a arder na praça pública.
Será que todos os que, ávidos por justiça virtual, se levantam para defender as pessoas que, a toda a hora e em todos os contextos, estão ao nosso lado a sofrer, de forma continuada, todo o tipo de abusos, de assédio moral, de humilhações no trabalho e nas escolas? Contra mim falo, também.
Entretanto, a Flávia Calina já se explicou, sublinhou que respeita todas as pessoas e admitiu que não devia ter feito os tais "likes". Continuo a não concordar com ela em relação ao assunto que levou à polémica. Não só nisto como em algumas outras coisas. Continuo, também, a admirá-la pelos mesmos motivos que me levaram a segui-la: o seu método de educação de crianças e muito do conteúdo que ensina aos filhos. Não concordo com tudo, mas concordo com a maior parte. E mesmo se não concordasse com 20 % do que ela diz, desde que as suas atitudes não colocassem outras pessoas em risco, não iria atacá-la como se não existissem outros e melhores motivos de revolta no mundo.
Façamos, antes, como aconselhava o maior influencer de todos os tempos:
"Quem nunca pecou que atire a primeira pedra"