Contos #5 - O Bufarinheiro
A vida dele era morna e doce como uma eterna tarde de outono.
Com 32 anos, o cabelo comprido desalinhado e um peculiar estilo grunge de desleixo cuidado, era muito atraente.
Tinha uma casa confortável, uma horta onde cultivava quase tudo o que comia, e as poupanças resultantes do seguro de vida dos pais.
Os pais, enquanto viveram, nunca o obrigaram a trabalhar.
Eram pessoas simples e empáticas, e entenderam que a normalidade do mundo era um conceito estranho e totalmente evitável.
Depois de acabar o liceu, arranjou um trabalho, mas a sua personalidade sensível não suportou mais de seis meses a natureza mesquinha do ser humano regular. De modo que não voltou a trabalhar.
Todavia não era ocioso. Levantava-se cedo para tratar da horta e fazer exercício físico.
A tarde era passada nos jardins da biblioteca, a devorar livros de filosofia, psicologia e história.
Para casa levava romances e ensaios. Por gosto, mantinha como hobby a profissão dos pais, que recolhiam objetos na lixeira para vender numa feira. Ele limpava-os e vendia-os na internet.
Ganhava um valor regular por mês e, por vezes, vendia os mais bizarros, em leilões online, por valores consideráveis.
Quando fazia, todos os dias, o mesmo caminho com a sua caquética mota, puxando um atrelado repleto de malcheirosos tesouros, as pessoas olhavam-no quase em choque.
Nunca o incomodou o olhar dos outros. Nunca se sentiu mal com as suas escolhas.
Tinha sido feliz até conhecer a Helena na biblioteca.
Tinham tudo em comum. Conversavam durante horas sobre todos os temas de que se lembravam, com especial incidência nas questões filosóficas e existenciais como convém ao início de qualquer romance.
Um dia ela perguntou-lhe qual era a sua ocupação.
Com o sorriso caloroso que o caracterizava respondeu que era bufarinheiro.
Nunca mais a viu.