Contos #2 - Dor e Escuridão
Escolho a indumentária: uma saia de veludo preto, um pouco abaixo dojoelho e propositadamente fora de moda; meias de rede da mesma cor, umtop de manga curta rendado e "um pouco quase nada" transparente e, nospés, umas sabrinas prateadas muito brilhantes.Apetrechada de confiança, induzida em pequenas doses no parque deestacionamento, passo através do túnel de néon azul para o localperfeito.
As paredes vibram com o som grave da música que se misturacom a minha pulsação, cada vez mais forte e ritmada. Cada gesto assumeo simbolismo etéreo de um ritual misterioso, até o simples movimentobrilhante das sabrinas, uma a seguir à outra, no caminho para a casade banho, onde um espelho enorme se transforma num vertical lago deprata, que me devolve a imagem de uma loucura bela e serena.Na maior parte do tempo, fundo-me com a música enquanto todos os meusneurónios executam uma coreografia sublime com o ambiente envolvente.
Passaram horas, dias ou uma eternidade?
A clareza mental que existia transformou-se num vazio avassalador. A escuridão tornou-se uma necessidade de sobrevivência acompanhada poruma dor profunda.
Sinto uma angústia oca preenchida por uma sensação que ensaia umadança mórbida entre o estômago e a cabeça. As minhas batidas cardíacas deixam de ter um ritmo agradável e equilibrado para assumirem umadesordem abrasiva, pesada e embrutecedora. A realidade é insuportávele apresenta-se em detritos escuros e pesados que se colam a todas asminhas células.
Apetece-me violentamente não existir, não ser e nãoestar em lado nenhum. Apetece-me vomitar toda a minha consciência numburaco sem fundo...
E, mesmo assim, considero cada segundo de dor e escuridão um preçomuito justo que voltarei a pagar dezenas de vezes, durante um tempoinventado por artistas loucos.